
O Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA) contabilizou 128 novos processos relacionados ao tema de racismo somente em 2025. Os números, divulgados pelo Painel de Estatística do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), foram atualizados até o dia 31 de janeiro. No dia em que se celebra o Dia Internacional de Combate a Discriminação Racial, nesta sexta-feira (21), os números ajudam a elucidar uma problemática de diz respeito à prevenção e a judicialização da prática racista no estado.
Conforme a tipificação da Organização das Nações Unidas (ONU), a discriminação racial ou racismo, se dá mediante toda a “distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto ou resultado anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício em um mesmo plano (em igualdade de condição) de direitos humanos e liberdades fundamentais.”
No Brasil, o racismo é considerado um delito penal desde 1989, mediante a Lei 7.716. A priori, os conceitos de racismo e injúria racial eram distintos. Mediante a lei brasileira, o racismo, dizia respeito a ofensa ou discriminação direcionada a integralidade de uma raça, enquanto a injúria racial era tipificada consiste em ofender um indivíduo com base na cor, raça ou grupo étnico.
Em 2023, uma nova lei fortaleceu a legislação de combate a esses crimes. A Lei 14.532/2023 equipara a injúria racial ao crime de racismo. Assim, os crimes raciais se tornaram imprescritíveis e inafiançáveis, além de resultarem em uma pena mais severa com reclusão de dois a cinco anos, além de multa.
NOVA LEI, NOVOS ATORES
Foi a partir dessa lei que a Defensoria Pública passou a poder atuar em casos deste tipo. Quem explica o cenário de atuação do órgão nesses casos é a defensora pública Mônica Magalhães, coordenadora do Núcleo de Equidade Racial.
“A partir de janeiro de 2023, já tem dois anos, há a legitimidade da Defensoria Pública para atuar na defesa das vítimas”, conta. “Algumas vítimas têm condições de contratar um advogado, existe uma advocacia muito combativa com relação a estes casos, mas a Defensoria tem legitimidade, inclusive tem um Núcleo de Equidade Racial, vinculado a esfera de Direitos Humanos, e este núcleo tem a atribuição para a defesa das vítimas de crimes raciais”, explica.

Foto: Mateus Bonfim. Mônica Magalhães em palestra sobre racismo e equidade racial no DPE-BA
“[A ação da Defensoria] Isso desde o processo de acolhimento, passando pelo cenário da orientação jurídica, e até mesmo, a Defensoria também tem legitimidade para atuar nos processo na defesa destas vítimas”, conclui.
Ainda conforme o levantamento, a Corte baiana ainda possui um total de 4.496 processos pendentes relacionados ao tema. Sobre a tramitação dos projetos, o Bahia Notícias conversou com o advogado Marinho Soares, doutorando em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e membro do coletivo Entidades Negras.
Ao falar sobre sua experiência em casos de racismo, Marinho relata que é comum que as vítimas deixem de oficializar denúncias ou dar seguimento aos processos em decorrência de um sentimento de incompreensão e impunidade.
“Muitas pessoas no dia a dia, é normal a pessoa me procurar ou pessoas, e falar assim ‘Eu acho que não dá em nada’, ‘Não quero’, isso acontece muito, infelizmente. Porque as pessoas acham que não dá em nada e [existe] uma pesquisa [que diz que] geralmente o delegado não entende como racismo, geralmente o Ministério Público não entende como racismo, geralmente o juiz ou a juíza não entende como racismo. Isso é natural. De achar que a conduta não é racista, tem isso também”, detalha.
O especialista defende que a representatividade no judiciário também é um fator que contribui para a manutenção destes padrões. “Isso está muito mais ligado, no meu entender, com a questão do racismo institucional. Porque o fato da grande maioria das pessoas serem brancas e não sofrerem o racismo, [faz com que elas] acham que isso não existe”, delimita.
O entendimento de Soares também ressoa na análise da defensora pública. Para Mônica, um dos maiores desafios no combate a discriminação racial é na formação de uma equipe especializada e equipada social e academicamente para lidar com o tema. “Ainda tem a questão do acolhimento das instituições e, além disso, da existência de profissionais preparados, com consciência racial, com letramento racial e com o conhecimento daquela conduta, para fazer a assunção do fato à norma, entender que o fato se encaixa na norma”, destaca.
Na visão da defensora, esse desafio é um dos que mais impacta na percepção de justiça nos casos de racismo. Como um crime inafiançável e imprescritível, a ideia de que o processo judicial pode resultar em “uma punição eficaz” muitas vezes é frustrada pela burocracia judicial.
DRAMA DA PERCEPÇÃO PENAL
Mônica Magalhães delimita que, apesar dos números registrados pelo CNJ, nem todos os processos relacionados ao racismo são encaminhados para a justiça penal, e acabam se encaminhando na esfera cível, por meio de acordos.
Ao BN, ela explica que após a oficialização da denúncia e o inquérito policial, a ação de formalização da denúncia, na esfera judicial, é de competência do Ministério Público (MP-BA). Nesses casos, o MP pode promover uma ação penal, o que dá início a um processo judicial no Tribunal de Justiça; ou ainda, pode utilizar um recurso considerado “chave” para grande parte dos casos, administrado na esfera civil, que é o acordo de não persecução Penal (ANPP).
“Hoje, depois das últimas alterações do código de processo penal, nós temos o acordo de não-percepção penal, que é justamente o caminho entre o recebimento dessas pessoas de informação de que houve crime, o inquérito e investigação policial, e o ajuizamento dessa ação penal. No meio desse caminho tem o ANPP”, descreve. Neste acordo, as partes podem chegar a um “consenso” sobre o fato, sem que o réu responda judicialmente.

Foto: Divulgação. Prédio da sede do Ministério Público do Estado da Bahia, no Centro Administrativo da Bahia em Salvador.
Marinho detalha que, em um dos seus casos mais impactantes, que ainda tramita no judiciário baiano, uma auxiliar de enfermagem esbarrou em um médico dentro de um hospital em Mata de São João e ele se referiu a ela nos seguintes termos: “Por isso que eu não gosto de gente favelada. Está vendo por que eu não gosto de trabalhar com preta favelada? Porque é assim, espaçosa”. Ofendida com os insultos, a auxiliar acabou passando mal e ao ser socorrida pelos colegas, relatou a agressão verbal. No entanto, foi denunciada pelo agressor por injúria, difamação e calúnia. A denúncia contra a auxiliar foi acolhida pelo Ministério Público, enquanto na denúncia formalizada por ela, o MP sugeriu um ANPP (Acordo de Não-Percepção Penal).
“Eu entendi que não podia [fazer um acordo neste cenário], pedi uma transação penal, até passar agora, em abril ou em maio, vem a decisão, a audiência. Não cabe, isso é pacificador, não cabe no caso de racismo. E eu falo que não pode e eles pedem. Então assim, isso é a nossa justiça quando se trata de racismo”, sucinta o Mestre em Direito.
E completa: “O maior desafio para mim, para provar o crime, é que as pessoas que julgam são racistas. Eles não entendem, não têm comprometimento com a questão racial e muito menos estão preocupados com isso”, destaca Marinho.
Ao BN, Monica Magalhães reafirma, que apesar de ir contra o conceito de punitivismo no judiciário, alguns padrões devem ser revistos no que tange a aplicação dos acordos.
“No contexto do punitivismo, a gente tem uma ideia muito equivocada de que só aquilo que é punido resolve; de que o Direito Penal, só ele vai resolver os problemas. Isso é uma falácia. Quem estuda sabe que o sistema punitivo não vai resolver os problemas da sociedade, isso é óbvio”, elucida.
Na visão da defensora pública, este tipo de técnica utilizada nos processos de crimes raciais acabam reforçando a seletividade do sistema penal. Ela reitera que, usado indiscriminadamente, os acordos esquivam o caminho para um debate mais completo sobre as práticas raciais e incita a reflexão:
“Mas aí a gente tem uma questão: se existe a punição para os negros, justamente a clientela do sistema punitivo, e os crimes que essas pessoas negras são acusadas e condenadas – muitas vezes por conta dessa injustiça epistêmica -, porque se quer dar uma resposta estatal para coibir as práticas de delitos, então, porque quando o crime é praticado contra as pessoas negras a gente tem um caminho alternativo, mais viável? Então, é algo que a gente precisa parar para analisar”, destaca.
“Será que aquela vítima do crime racial está satisfeita com a resposta que o Estado está dando naquele processo? Será que esse acordo de não-persecução penal, além da qualidade utilitarista que tem para desafogar o número de ações penais, será que vai trazer a eficácia que a gente quer? Que é justamente trazer a tona a discussão a criminalidade, os crimes praticados contra as pessoas negras, as religiões de matriz africana. Será que aquele que paga uma prestação naquele momento ele vai ser reeducado, restaurado? Então, o acordo de não persecução penal sem outras técnicas não vai trazer o que a gente busca, que é a possibilidade de inibir a prática reiterada de condutas racistas”, ressalta.
CAMINHO PARA O FUTURO
É partindo deste pressuposto que, para Marinho, o caminho para uma justiça mais preparada para lidar com casos de racismo está na representatividade, seja nos Tribunais, Defensorias, Ministérios Públicos ou na advocacia.
Sobre o tema, o advogado cita que em outro caso emblemático, em que o gerente de banco teria solicitado que os seguranças expulsassem um homem do estabelecimento, já algemado, com a seguinte ordem: “Tire esse homem daqui, pois eu não faço acordo com esse tipo de gente”.
Para ele, o caso poderia ter sido facilmente resolvido com uma leitura racial mais afiada. “Aí recorre ao Tribunal, o Tribunal todo entende que o juiz está certo, que foi uma fala ríspida. A você vai ver o Tribunal, nenhuma das pessoas que julgaram no recurso era negra. Então o que falo é que a principal solução que nós temos é uma representatividade nos tribunais”, afirma.
E completa: “A representatividade é mais nesse sentido, porque são pessoas que, em tese, já sofreram racismo e sabem como o racismo corrói, como o racismo destrói. Eu não tenho dúvidas que uma das soluções para a gente conseguir aumentar os processos e que as pessoas que praticam racismo sejam julgadas e condenadas, é a representatividade dos tribunais.”
BN