
Uma nova alternativa para lidar com as noites em claro vai chegar em breve ao Brasil. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou recentemente o medicamento lemborexante, vendido sob o nome comercial de Dayvigo pela farmacêutica japonesa Eisai. O fármaco conta com um mecanismo de ação inédito para combater a insônia, que se acredita gerar menos quadros de dependência.
O remédio foi eleito por pesquisadores da Universidade de Oxford, no Reino Unido, como aquele com o melhor perfil de eficácia, aceitabilidade e tolerabilidade entre 36 alternativas avaliadas em um estudo publicado na revista científica The Lancet.
— Os benzodiazepínicos e as drogas Z, muito usados hoje, apresentam um risco elevado de abuso e dependência. Até o momento, o que sabemos do lemborexante é que esse risco é baixo, então é uma classe bem promissora. Mas, para se descobrir o primeiro caso de abuso de benzodiazepínicos, foram quase 30 anos, então precisamos observar — diz a neurologista Dalva Poyares, professora de Medicina do Sono na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Ao GLOBO, a Eisai, responsável pelo remédio, disse estar “se preparando para sua introdução no mercado brasileiro”. De acordo com a empresa, ainda não há definição sobre a data de lançamento, nem sobre o preço, mas a expectativa é trazê-lo “o mais breve possível”.
Uma das etapas pendentes para a chegada ao país é a definição do preço máximo que poderá ser cobrado pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED). Nos Estados Unidos, onde foi aprovado em 2019, a caixa com 30 comprimidos é vendida por, em média, 300 dólares, cerca de R$ 1.600 na cotação atual.
A dose recomendada é de 5 mg, no máximo uma vez por noite, alguns minutos antes de ir para cama. A pessoa deve ter um intervalo de pelo menos 7 horas antes do horário em que planeja despertar. A dose pode ser aumentada para 10 mg “com base na resposta clínica e tolerabilidade do paciente”, segundo o aval da Anvisa. A aprovação é apenas para adultos.
Novo mecanismo de ação
O lemborexante pertence a uma classe nova de medicamentos chamada de antagonistas da hipocretina (ou orexina), que atua em sistema no cérebro diferente dos remédios tradicionais. Cientistas descobriram essa via ao estudar a narcolepsia, distúrbio que faz com que as pessoas adormeçam repentinamente.
Inicialmente, sabia-se que a hipocretina, um neurotransmissor, tinha uma função no apetite. Mas os pesquisadores observaram que indivíduos com a doença também tinham uma falta dessa molécula no cérebro, e descobriram uma relação dela com o ciclo de sono e vigília.
No final dos anos 2000, cientistas começaram a desenvolver fármacos para bloquear os receptores de hipocretina, e consequente a sua absorção. O feito foi bem sucedido para induzir o sono e, em 2014, um primeiro fármaco, o suvorexanto, foi aprovado nos EUA. Lá, ele é vendido como Belsomra pela MSD.
Em 2019, o país aprovou o lemborexante, da Eisai, e, em 2022, a Food and Drug Administration (FDA), agência reguladora americana, deu o sinal verde para o daridorexanto, vendido como Quviviq pela Idorsia. Não há previsão para aprovação do suvorexanto e do daridorexanto no Brasil.
O principal diferencial é que esses remédios têm uma ação específica no cérebro e inibem a vigília. Enquanto isso, os benzodiazepínicos e as drogas Z, mais comumente usados no Brasil hoje, fazem o contrário. Eles induzem um neurotransmissor chamado GABA, que promove uma redução completa da atividade do sistema nervoso, “desligando o cérebro”.
—A grosso modo, o lemborexante bloqueia o que nos mantém acordado, ao contrário de outras classes, que agem induzindo o sono. Em outras palavras, essa classe impede a ação do combustível que mantém o interruptor do cérebro na posição “acordado” — resume Lucio Huebra, neurologista e médico do sono do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo.
Uma nova opção é importante porque, desde que foram descobertos, na década de 60, os benzodiazepínicos se tornaram uma das categorias de fármacos mais vendidos, sendo utilizados também para tratamento de transtornos mentais como ansiedade e depressão, caso do clonazepam (rivotril) e do alprazolam.
Porém, com o tempo de uso, descobriu-se que esses remédios causam dependência e, a longo prazo, elevam o risco de déficit cognitivo. Além disso, quando misturados com álcool ou ingeridos em excesso, os remédios podem provocar desfechos graves, como paradas respiratórias.
A partir dos anos 80, quando esses efeitos negativos começaram a ser relatados, começou um movimento de “desprescrição” dos remédios. Foi nesse contexto que criaram as drogas Z, como o zolpidem, também conhecidas como não-benzodiazepínicos.
Ainda que a ação seja de forma mais específica, direcionada a apenas uma subunidade do neurotransmissor GABA, elas continuam a atuar no mesmo mecanismo dos benzodiazepínicos. Frustrando o que se esperava na época, as drogas Z também se mostraram capazes de gerar dependência.
— A dependência é um grande problema hoje para os pacientes com insônia, pois fica muito difícil suspender a medicação. E ela não deve ser usada a longo prazo, pois podem levar a consequências principalmente relacionadas à memória e funções cerebrais. Também há risco de comportamentos anormais tipo sonambulismo — explica Luciana Palombini, pneumologista e pesquisadora do Instituto do Sono/AFIP.
Os especialistas celebram que, no caso do lemborexante, os estudos clínicos até agora indicaram um perfil mais favorável, com menor risco de dependência e efeitos colaterais, diz Alexandre Pinto de Azevedo, psiquiatra do Programa de Transtornos do Sono do Hospital das Clínicas da USP e membro da Associação Brasileira do Sono (ABS):
— Sua ação favorece a manutenção do sono, com perfil mais preservado de arquitetura do sono e menor risco de dependência e tolerância, já que não modula diretamente o neurotransmissor GABA. O lemborexante pode preencher uma lacuna terapêutica no mercado brasileiro. Ele oferece uma alternativa sem necessidade de desmame ou risco evidente de insônia rebote na retirada da medicação.
Mas o médico pondera que, entre as alternativas já disponíveis, existe uma droga Z que também não apresenta o mesmo risco de dependência que o zolpidem e deve ser priorizada: a ezopiclona. O remédio foi de fato considerado o segundo com o melhor perfil pela revisão de pesquisadores de Oxford.
— Tanto que diferentes diretrizes internacionais apontam a eszopiclona e o lemborexante como as principais medicações de escolha para o tratamento da insônia, pelo perfil similar de segurança e indicação similar de tratamento da insônia crônica de início de noite e/ou manutenção — afirma.
Tratamento da insônia
A ABS estima que duas a cada três pessoas no país têm alguma dificuldade relacionada à hora de dormir. Dados do Episono, pesquisa realizada na capital paulista pelo Instituto de Sono, revelam uma prevalência de 15% de diagnóstico formal de insônia crônica, quando as queixas ocorrem ao menos três vezes na semana e perduram por pelo menos três meses.
Especialistas ouvidos pelo GLOBO reforçam que o tratamento inicial não envolve remédios, mas sim mudanças de hábitos, como prática de atividades físicas, redução de estímulos, como telas e cafeína, ao fim do dia, evitar álcool e tabagismo e ajustes no ambiente do quarto, rotinas conhecidas como higiene do sono.
— Temos também a Terapia Cognitivo-Comportamental para Insônia (TCC-I), considerada padrão-ouro pelas diretrizes internacionais. Ela combina técnicas que atuam nos três pilares da insônia: pensamentos disfuncionais, comportamentos inadequados e desregulação fisiológica — explica Azevedo.
Ainda assim, é alto o número de brasileiros que recorrem aos remédios. De acordo com um estudo publicado na Revista de Saúde Pública, com base em dados da última Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), do IBGE, 8,5% da população, o equivalente a cerca de 18 milhões de pessoas, usam medicamentos.
Dados da Anvisa, compilados a pedido do GLOBO, mostram que quase 16 milhões de caixas de zolpidem foram comercializadas no ano passado, uma alta significativa em relação a 10 anos atrás, quando eram cerca de 5 milhões de caixas ao ano.
— O maior desafio no manejo da doença hoje é as pessoas entenderem a importância do sono e que muitas vezes não dá para fazer tudo que se deseja. Um cenário frequente é a pessoa chegar tarde em casa, ficar envolvida em telas, celular, questões do dia até tarde e querer dormir imediatamente, quando o cérebro não está pronto — diz Luciana.
Azevedo explica que o tratamento medicamentoso geralmente é indicado para pacientes cujo tempo de sono total é inferior a 6 horas, que apresentam prejuízos na funcionalidade cotidiana e que não respondem à terapia convencional:
— Quanto à forma de utilização, o princípio é claro: a menor dose eficaz, pelo menor tempo necessário, sempre com monitoramento médico. O ideal é que sejam usados de modo pontual ou em períodos curtos, evitando o uso crônico.
















