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Elixir ‘milagroso’ chinês pode causar extinção de jumentos; entenda o caso

Jumentos nordestinos correm risco de extinção — Foto: Jean Hélcio/Wikimedia Commons

Seja na voz de Luiz Gonzaga, nos cordéis ou nas artes plásticas, o jumento é retratado como protagonista da história nordestina. Tal relevância, no entanto, não garante a sua proteção. No acumulado de 2023 até setembro, 19.978 asininos foram abatidos no país, segundo dados da Plataforma de Gestão Agropecuária do Sistema de Informações Gerenciais do Serviço de Inspeção Federal disponibilizados pelo Ministério da Agricultura (MAPA).

“O jumento nordestino é um patrimônio histórico cultural. O Nordeste foi construído em seu lombo, sua força de trabalho sustenta inúmeras famílias e comunidades até hoje”, defende a médica-veterinária Patricia Tatemoto, representante da The Donkey Sanctuary na América do Sul.

Desde 2017, o número de animais abatidos se aproxima dos 200 mil, o equivalente a 50% da população de jumentos, burros e mulas, considerando o último censo agro, divulgado em 2017, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

A atividade, regulamentada em 2016 pela Agência de Defesa Agropecuária da Bahia (Adab), vinculada à Secretaria da Agricultura (Seagri), tinha como objetivo minimizar os impactos gerados pela alta taxa de abandonos de jumentos nas zonas rurais nordestinas. Com a disseminação do uso de motocicletas no campo, os animais perderam utilidade e passaram a ser abandonados por seus proprietários.

É nesse contexto que entra a China, país que já vinha demonstrando interesse em importar, em maior escala, o couro da espécie. O interesse está relacionado à fabricação de ejiao, fármaco popular na medicina tradicional asiática — tratado como um “elixir milagroso” — produzido a partir da extração do colágeno de jumento.

China importa jumentos brasileiros para produção de ejiao — Foto: Canva/ Creative Commoms
China importa jumentos brasileiros para produção de ejiao — Foto: Canva/ Creative Commoms

O produto gelatinoso promete retardar o envelhecimento, prevenir tumores e impotência sexual e pode ser encontrado virtualmente por US$ 120 (cerca de R$ 590).

A diminuição significativa da população de jumentos colocou em alerta ativistas da causa animal. Recentemente, manifestantes de diversas cidades do país se mobilizaram para pedir o fim da atividade, que, segundo eles, compromete a espécie nativa e um patrimônio genético único.

Ativistas se reúnem em São Paulo para pedir o fim do abate de jumentos — Foto: Frente Nacional de Defesa dos Jumentos/ Divulgação
Ativistas se reúnem em São Paulo para pedir o fim do abate de jumentos — Foto: Frente Nacional de Defesa dos Jumentos/ Divulgação

Como é feito o abate de jumentos no Brasil?

Diferentemente da pecuária suína e bovina, não existe criação voltada para suprir a demanda dos frigoríficos. “A prática é custo-proibitiva, não compensa para os atravessadores mantê-los por três a quatro anos, tempo entre gestação, cria, recria etc”, esclarece Tatemoto.

Por isso, o processo começa com a coleta dos animais em diversas cidades do Nordeste e, mais tarde, o transporte para Bahia, onde estão localizados os principais frigoríficos autorizados do pa

Os animais são instalados em propriedades rurais até serem encaminhados para os abatedouros. Organizações defesa dos animais afirmam que, tanto no transporte quanto nas fazendas, os jumentos são submetidos a situações que consideram danosas, como viagens longas e estressantes, até falta de alimentação adequada, água e controle de cuidado sanitário.

“Estamos observando o comprometimento de um patrimônio genético único”, denuncia Vânia Plaza Nunes, Diretora Técnica do Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal.

Em 2019, resgates registrados pela Polícia Civil e pela Agência de Defesa Agropecuária da Bahia (Adab) resultaram em uma decisão liminar provisória que proibiu a atividade no estado. Arali Duarte, juíza responsável pelo caso, citou o “histórico de falta de fiscalização com comprometimento do rebanho” como justificativa. A decisão foi revogada 10 meses depois.

Como é feita a fiscalização?

Uma funcionária da Adab ouvida pela reportagem garante que, após a retomada em 2019, muita coisa mudou. “Todas as propriedades precisam ter médicos-veterinários, os responsáveis técnicos, que trabalham para garantir os bons-tratos. Fiscalizamos e observamos se as orientações são seguidas e, em caso de desconformidade, intervimos.”

O controle do transporte interestadual também é realizado pela agência. É papel dos encarregados conferir a Guia de Trânsito Animal (GTA) e confirmar se a carga que sai do estado é a mesma que chega o abatedouro. No entanto, como os frigoríficos possuem o carimbo do Serviço de Inspeção Federal (SIF), a última etapa da fiscalização, a interna, foge da jurisprudência da Adab.

Ativistas tentam transformar espécie em patrimônio histórico — Foto: Canva/Creative Commoms
Ativistas tentam transformar espécie em patrimônio histórico — Foto: Canva/Creative Commoms

Carlos Spínola, diretor de Defesa Animal da Agência de Defesa Agropecuária da Bahia (Adab), afirma que, após a retomada das atividades em 2019, iniciativas foram implementadas a fim de evitar novos incidentes envolvendo maus-tratos.

A presença de um médico-veterinário nas propriedades de espera, onde os animais ficam enquanto não há espaço nos frigoríficos, tornou-se obrigatória, afirma Spínola. Além disso, foi proibido o abate de gestantes, animais com peso inferior a 90 kg e o transporte de cargas com mais de 40% de fêmeas.

“Essa portaria foi criada por nós após os casos de maus-tratos, deveria ser um exemplo nacional até pelo MAPA. É a única do Brasil que faz essa proteção”, defende o Spinola.

A agência, no entanto, enfrenta algumas barreiras, visto que a fiscalização interna dos frigoríficos foge da sua jurisprudência. Nessa etapa, é o auditor fiscal que fica responsável por realizar análises clínicas.
Um membro do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais Federais Agropecuários (ANFFA) explicou à reportagem que sua função é participar de análises clínicas dos animais para garantir sua destinação adequada e prevenir doenças que podem acometer o consumidor final.
“O principal desafio das inspeções é a falta de auditores agropecuários. Enquanto o déficit aumenta, observamos a crescente a produção agropecuária nos últimos anos. Tal situação leva ao desgaste generalizado dos auditores que atuam nas inspeções, fiscalizações, auditorias e ensaios laboratoriais”, critica.
Além disso, para o trabalho ser efetivo, é necessário um esforço conjunto das diversas esferas de Estado. “É fundamental que outros órgãos atuem em parceria com a Defesa Agropecuária. As inspeções são importantes para evitar abates clandestinos, maus-tratos de animais, e possíveis contaminações e doenças ao consumidor.”
Apesar de o órgão estadual assegurar um novo cenário, ainda há denúncias de maus-tratos.Tatemoto afirma que os processos ainda são violados fora e dentro dos abatedouros.
“Funcionários alegam as ingerências e processos clandestinos. Existem fraudes internas. As fazendas são de triagem, mas a atividade ainda é extrativista e os animais continuam sem rastreabilidade”, alerta a ativista PhD pela Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo (USP).

O que diz a lei?

“Ainda que não exista uma lei que proíba o abate para consumo de pele e carne de jumento, os abates violam a Constituição”, opina Yuri Lima, coordenador jurídico da Frente Nacional de Defesa dos Jumentos.
O advogado cita o Artigo 225, em que práticas que levam uma espécie à extinção são vetadas, e o Artigo 32, presente no mesmo dispositivo constitucional, que criminaliza a crueldade animal.

Os mesmos artigos também citados por Ricardo Izar (PP-SP) no PL 1218/2019, projeto de lei que busca transformar a espécie em patrimônio nacional e proibir a prática em território nacional.

Na visão de Lima, o poder público brasileiro tem priorizado interesses privados de empresários envolvidos na atividade extrativista ao invés de garantir a proteção da fauna nativa. “O Brasil não está ganhando nada com essa atividade. Pelo contrário, estamos com um passivo ambiental, vamos perder uma espécie importante e ainda colocamos em risco a saúde da população”, afirma.

Autorização para abate de jumentos no Brasil é concedida pelo Ministério da Agricultura e Pecuária — Foto: Canva/ Creative Commoms
Autorização para abate de jumentos no Brasil é concedida pelo Ministério da Agricultura e Pecuária — Foto: Canva/ Creative Commoms

Abate em números

Um estudo realizado pela Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da USP analisou dados do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) e mostrou que o abate de jumentos para exportação cresceu 8.000% entre 2015 — ano anterior à autorização — e 2019.

Entre 2015 e 2016, a média de abates era de 1.435. O número saltou para 26.127, em 2017, e 62.622, no ano seguinte. Em 2019, quando a prática foi banida, apenas 25 animais foram abatidos.

Em 2021, segundo o MAPA, cerca de 72 mil jumentos são abatidos anualmente no país. Especialistas em saúde animal e ativistas da causa sugerem que, nessa velocidade, a espécie pode ser extinta.

Neste sentido, o artigo “Análises de variabilidade da linhagem materna de cavalos e jumentos”, realizado por pesquisadores da Escola de Medicina Veterinária e Zootecnia (EMVZ) da UFBA, demonstrou urgência na criação de políticas públicas que visam a conservação desses animais.

A pesquisa, que investigou o material genético de 17 raças de cavalos e jumentos nativos e 24 raças de cavalos oriundos de outros países, mostra que apesar da semelhança genética entre os animais brasileiros, as raças possuem genoma único.

“São características adaptativas únicas em termos de condições de clima, solo e temperatura, resistência a doenças e parasitas, características fisiológicas e uso de recursos alimentares”, afirma o levantamento.

“Estamos atravessando um limite planetário em relação à perda de biodiversidade. Não podemos perder mais recursos genéticos, isso implica na nossa própria sobrevivência”, alerta Patricia Tatemoto.

De olho no futuro

Vanessa Negrini, diretora do Departamento de Proteção, Defesa e Direitos Animais do Ministério do Meio Ambiente, compreende que “o jumento nordestino não se trata de uma espécie de produção, mas sim nativa”. Por isso, a pasta tem tentado dialogar com o Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) para viabilizar alternativas menos invasivas.

“Estamos estudando a abertura de um edital para selecionar pesquisas de produção de colágeno de jumentos sem abate animal, por meio de técnicas de agricultura celular e fermentação de precisão”, conta a diretora. Negrini estima que a atividade teria potencial de gerar R$ 2 bilhões anuais em receita.

Procurado, o Ministério da Agricultura não disponibilizou porta-voz para responder à reportagem até a conclusão deste texto. Os frigoríficos Cabra Forte, Frinordeste e Sudoeste, localizados em Simões Filho, Amargosa e Itapetininga, na Bahia, não responderam à reportagem.

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